sábado, 14 de maio de 2011

Moacir Gadotti sobre Paulo Freire-II

CÁTEDRA PAULO FREIRE
Universidade Nacional da Costa Rica
Auditorio del CIDE
San José, 19 de abril de 2001
CONTRIBUIÇÃO DE PAULO FREIRE AO
PENSAMENTO PEDAGÓGICO MUNDIAL
Moacir Gadotti (*)
As teorias de Paulo Freire cruzaram as fronteiras das disciplinas, das ciências,
para além da América Latina. Ao mesmo tempo em que as suas reflexões foram
aprofundando o tema que ele perseguiu por toda a vida – a educação como prática da
liberdade – suas abordagens transbordaram-se para outros campos do conhecimento,
criando raízes nos mais variados solos – desde os mocambos do Recife às comunidades
burakunins do Japão - fortalecendo teorias e práticas educacionais, bem como
auxiliando reflexões não só de educadores, mas também de médicos, terapeutas,
cientistas sociais, filósofos, antropólogos e outros profissionais. Seu pensamento é
considerado um modelo de transdisciplinaridade.
Não podemos ver a Freire apenas como um educador de adultos ou como um
acadêmico, ou reduzir sua obra a uma técnica ou metodologia. Ela deve ser lida dentro
do contexto da “natureza profundamente radical de sua teoria e prática anti-colonial e de
seu discurso pós-colonial”, como no diz Henry Giroux (in Peter Maclaren and Peter
Leonard, organizadores, Paulo Freire: a Critical Encounter, Routledge, 1993, p. 177).
Isso nos vai mostrar que Freire assumiu o risco de cruzar fronteiras para poder ler
melhor o mundo e facilitar novas posições sem sacrificar seus compromissos e
princípios.
As barreiras e fronteiras estão sempre à nossa volta. Os intelectuais e educadores
que ocupam fronteiras muito estreitas não percebem que elas também tem a capacidade
de aprisioná-los. Nesse sentido, é preciso relevar a importância da obra de Paulo Freire
em termos mais globais. Seria ingênuo considerar a sua pedagogia como uma pedagogia
só aplicável no chamado “Terceiro Mundo”.
As primeiras experiências de Paulo Freire, com a educação de adultos, datam da
década de 50, no nordeste brasileiro, aplicando o método que leva o seu nome, passando
pelo Chile na década de 60 e auxiliando a reconstrução pós-colonial de novos sistemas
educacionais em diversos países da África, na década de 70. Voltando ao Brasil, depois
de 16 anos de exílio, envolveu-se, na década de 80, na construção democrática da escola
(*) Moacir Gadotti, doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, é professor
da Universidde de São Paulo e Diretor Geral do Instituto Paulo Freire em São Paulo (Brasil). Escreveu
vários livros. Entre eles: Convite à leitura de Paulo Freire (traduzido em japonês, espanhol, italiano,
inglês), A educação contra a educação (francês e português), Pedagogia da práxis (português, espanhol,
inlgês), História das idéias pedagógicas (português, espanhol), Perspectivas atuais da educação e
Pedagogia da Terra. Seu livro Paulo Freire: uma biobibliografia, com cerca de 800 páginas, é o trabalho
mais completo disponível sobre a vida e a obra de Paulo Freire.
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pública popular na América Latina. A última grande experimentação prática de suas
idéias deu-se no início da década de 90 em São Paulo (Brasil), onde ele foi Secretário de
Educação, promovendo a formação crítica do professor, a educação de adultos, a
reestruturação curricular e a interdisciplinaridade.
O que oferecia ele de tão original para ser-se conhecido internacionalmente?
Numa época de educação burocrática, formal e impositiva ele se contrapôs a ela,
levando em conta as necessidades e problemas da comunidade e as diferenças étnicoculturais,
sociais, de gênero, e os diferentes contextos. Ele procurava empoderar as
pessoas mais necessitadas para que elas mesmas pudessem tomar suas próprias
decisões, autonomamente. Seu método pedagógico aumentava a participação ativa e
consciente.
1. O pensamento de Paulo Freire pode ser relacionado com o de muitos
educadores contemporâneos. Podemos encontrar grande afinidade entre Paulo Freire e
o revolucionário educador francês Célestin Freinet (1896-1966), na medida em que
ambos acreditam na capacidade de o aluno organizar sua própria aprendizagem.
Freinet deu enorme importância ao que chamou de "texto livre". Como Paulo Freire,
utilizava-se do chamado método global de alfabetização, associando a leitura da palavra
à leitura do mundo. Insistia na necessidade, tanto da criança quanto do adulto, de ler o
texto entendendo-o. Como Paulo Freire, preocupou-se com a educação das classes
populares. Seu método de trabalho incluía a imprensa, o desenho livre, o diálogo e o
contato com a realidade do aluno.
Embora Paulo Freire não defenda o princípio da não-diretividade na educação,
como faz o psicoterapeuta Carl Rogers (1912-1987), não resta dúvida de que existem
muitos pontos comuns nas pedagogias que eles defendem, sobretudo no que diz respeito
à liberdade de expressão individual, à crença na possibilidade de os homens
resolverem, eles próprios, seus problemas, desde que motivados interiormente para isso.
Para Rogers, assim como para Paulo Freire, a responsabilidade da educação está no
próprio estudante, possuidor das forças de crescimento e auto-avaliação. A educação
deve estar centrada nele, em vez de centrar-se no professor ou no ensino; o aluno deve
ser senhor de sua própria aprendizagem. E a aula não é o momento em que se deve
despejar conhecimentos no aluno, nem as provas e exames são os instrumentos que
permitirão verificar se o conhecimento continua na cabeça do aluno e se este o guarda
do jeito que o professor o ensinou. A educação deve ter uma visão do aluno como
pessoa inteira, com sentimentos e emoções.
O que tem em comum Paulo Freire com Ivan Illich (1926), o filósofo austríaco?
Nos dois podemos encontrar a crítica da escola tradicional. Entre a
burocratização da instituição escolar atual, os dois demandaram que os educadores
buscassem seu desenvolvimento próprio e a libertação coletiva para combater a
alienação das escolas e propondo o redescobrimento da autonomia criadora. Apesar
deste pontos em comum, existem consideráveis divergências. No trabalho de Ivan Illich,
podem encontrar um pessimismo em relação à escola. Ele não acredita que a escola
tradicional tenha futuro. Por isso seria necessário “desescolarizar” a sociedade. Em
Paulo Freire encontramos otimismo. A escola pode mudar e deve ser mudada pois joga
um papel importante na transformação social. O que une Illich e Freire é sua crença
profunda em revolucionar os conteúdos e a pedagogia da escola atual. Os dois acreditam
que essa mudança é ao mesmo tempo política e pedagógica e que a crítica da escola é
parte de uma crítica mais ampla à civilização contemporânea.
Desde a tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação da
Universidade de Pernambuco, Paulo Freire faz referências a John Dewey (1859-1952),
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citando-lhe a obra Democracia e educação, publicada no Brasil em 1936. Essa
referência não podia deixar de existir, pois Paulo Freire era um grande admirador da
pedagogia de Anísio Teixeira (1900-1971), de quem se considera discípulo e com o qual
concordava na denúncia do excessivo centralismo, ligado ao autoritarismo e ao elitismo
da educação brasileira. Foi Anísio Teixeira quem introduziu o pensamento de Dewey no
Brasil.
Como John Dewey (1859-1952), o conhecido filósofo e educador norteamericano,
Paulo Freire insiste no conhecimento da vida e da comunidade local. Porém
podemos encontrar uma diferença na noção de cultura. Em Dewey, ela é simplificada,
pois não envolve a problemática social, racial e étnica, ao passo que, em Paulo Freire,
ela adquire uma conotação antropológica, já que a ação educativa é sempre situada na
cultura do aluno. O que a pedagogia de Paulo Freire aproveita do pensamento de John
Dewey é a idéia de "aprender fazendo", o trabalho cooperativo, a relação entre teoria e
prática, o método de iniciar o trabalho educativo pela fala (linguagem) dos alunos.
Também podemos evidenciar a semelhança de pontos de vista de Paulo Freire e
Lev Vygotsky (1896-1934), o pedagogo russo e o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-
1980).
A teoria da escrita de Vygotsky contém uma descrição dos processos internos
que caracterizam a produção das palavras escritas. Diz ele que a fonte mental de
recursos da escrita é o "discurso interno", que evolui a partir do discurso egocentrado da
criança. Vygotsky reconhece que, em todos os discursos humanos, o indivíduo muda e
desenvolve o discurso interno com a idade e a experiência. A linguagem é tão
extraordinariamente importante na sofisticação cognitiva crescente das crianças quanto
no aumento de sua afetividade social, pois a linguagem é o meio pelo qual a criança e os
adultos sistematizam suas percepções.
Embora Vygotsky e Freire tenham vivido em tempos e hemisférios diferentes, a
abordagem de ambos enfatiza aspectos fundamentais, relativos a mudanças sociais e
educacionais que se interpenetram. Enquanto Vygotsky enfoca a dinâmica psicológica,
Freire se concentra no desenvolvimento de estratégias pedagógicas e na análise da
linguagem.
Para Piaget o papel da ação é fundamental para o desenvolvimento da criança
porque é a característica essencial do pensamento lógico para ser operativo. Piaget
sustenta que aprendemos somente quando queremos e somente quanto o que
aprendemos é significativo para nós mesmos. Paulo Freire estava de acordo com essa
tese de Piaget e insistia: necessitamos desenvolver a “curiosidade” do aprendiz para
poder desenvolver o ato de aprendizagem. Quando separamos a produção do
conhecimento do descobrimento do conhecimento que já existe, as escolas podem ser
facilmente transformadas em lojas de venda de conhecimento.
Paulo Freire foi influenciado de diferentes maneiras: seu pensamento humanista
foi inspirado no personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) e pelo
existencialismo (Martin Buber), pela fenomenologia (Georg Hegel) e pelo Marxismo
(Antonio Gramsci e Jürgen Habermas). Em todos casos, não se pode dizer que Paulo
Freire tenha sido eclético. Ele integra os elementos fundamentais destas doutrinas
filosóficas sem repeti-las de uma forma mecânica ou preconceituosa.
A pedagogia de Paulo Freire adquiriu sentido universal a partir da relação entre
oprimido e opressor, demonstrando que isso ocorre em todo o mundo. Suas teorias, por
outro lado, têm sido enriquecidas por muitas e variadas experiências em muitos países.
Além dos países em que o próprio Paulo Freire trabalhou diretamente, muitos outros
tem “aplicado” suas idéias e seu método com resultados muito positivos.
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Faz mais de 30 anos que foi escrita a Pedagogia do Oprimido e a Educação
Popular, marcada por essa obra, continua sendo um grande referencial para a educação
latino-americana. É um marco teórico que continua inspirando numerosas experiências,
já não apenas na América Latina, mas no mundo. Não apenas nos países do Terceiro
Mundo, mas também nos países com alto desenvolvimento tecnológico e em realidades
muito distintas.
Paulo Freire é tributário desse movimento no qual ele está inserido e ao qual deu
uma enorme contribuição. A educação popular tem passado por vários momentos. É um
movimento dinâmico e alimentado por inúmeras visões, formando um imenso mosaico.
Nem todas essas visões se identificam com o pensamento de Paulo Freire, mas muitas
se referem a ele, passando do otimismo guerreiro da campanha de alfabetização da
Nicarágua, pelas escolas comunitárias de cunho não-formal, às experiências estatais de
educação, todos se reportando ao paradigma teórico de Paulo Freire. Não há dúvida de
que a obra de Paulo Freire deverá continuar se desenvolvendo em múltiplas direções,
talvez até inconciliáveis. Ele não poderá ter o controle sobre isso e ser responsável pelo
que será feito de sua orra, como Marx não é responsável pelo marxismo ou por tudo o
que se fez em nome dele. E as críticas, positivas e negativas, também deverão continuar.
2. Quem inspirou Paulo Freire? Quais são as fontes primárias do seu
pensamento? Que autores o influenciaram ou tiveram ressonância nele? Em que
corrente ou tendência pedagógica contemporânea poderia ele ser inserido?
Eis algumas perguntas que muitos me fizeram depois de escrever alguns textos
sobre Paulo Freire, principalmente depois do livro Paulo Freire: uma biobiliografia
(1996).
Conversei várias vezes com ele sobre isso. Ele sempre se esquivava. Dizia que
isso não era importante. De fato, ele não se interessava muito em saber quais eram os
autores ou as correntes filosóficas que o influenciaram. Eu cheguei a escrever que ele
era “inclassificável” dentro das correntes pedagógicas. Ele não se interessava por
exegese, nem da exegese dos seus textos. Lia-os e relia-los muito para ver se continham
equívocos e até para entender-se melhor, aprofundar suas posições. Por isso, cabe a nós,
aos estudiosos do seu pensamento, buscar responder a essas perguntas.
Creio que duas foram as fontes mais importantes do seu pensamento: o
humanismo e o marxismo. Nesta ordem.
Paulo Freire foi um dos últimos humanistas. Em seus primeiros escritos,
principalmente no seu primeiro livro, ainda inédito Educação e atualidade brasileira
(este livro está sendo editado para ser publicado pelo Instituto Paulo Freire) ele cita com
freqüência os filósofos humanistas cristãos Gabriel Marcel e Jacques Maritain, autores
que eram muito discutidos nos anos 50. Como humanista afirmou e difundiu a crença de
que era possível mudar a ordem das coisas e mostrou como fazê-lo. Para ele a utopia era
o verdadeiro realismo do educador.
Embora não se possa falar com muita propriedade de fases do pensamento
freireano, pode-se pelo menos dizer que a influência do marxismo deu-se depois da
influência humanista cristã. São momentos distintos, mas não contraditórios. Como
afirma o filósofo alemão Woldietrich Schmied-Kowarzik, em seu livro Pedagogia
dialética, Paulo Freire combina temas cristãos e marxistas na sua pedagogia dialéticodialógica.
Paulo Freire é um pensador da cultura, um dialético. A educação é uma
prática antropológica por natureza, portanto ético-política. Por essa razão, pode tornarse
uma prática libertadora. O tema da libertação é ao mesmo tempo cristão e marxista.
O método utilizado é que é diferente, a estratégia é diferente. O fim é o mesmo.
Encontramos Hegel como referência desde o início. A relação opressor-oprimido
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lembra a relação senhor-escravo de Hegel. Depois veio Marx, Gramsci, Habermas. Seu
pensamento é humanista e dialético.
A afirmação da utopia como práxis docente e discente lembra o paradigma
humanista, cristão e socialista. O que há de original em Freire, com relação ao
marxismo ortodoxo é que ele afirma a subjetividade como condição da revolução, da
transformação social. Daí o papel da educação como conscientização. Ele afirma o
papel do sujeito na história e a história como possibilidade. A história é possibilidade.
Não através de um movimento mecanismo de luta de classes, pura e simplesmente, mas
pela ação consciente de sujeitos históricos organizados. Depreendo de Freire que ele
admitia que o socialismo é uma utopia que precisa ser renovada pela educação. Isso
havia escapado a Marx, a Lênin e aos marxistas em geral que pouca importância deram
à educação. Por isso Paulo Freire foi criticado pelos marxistas ortodoxos.
A relação entre educação e utopia está na base do pensamento freireano. Ela
pode ser resumida em quatro pontos:
1º - Para construir o futuro é preciso primeiro sonhá-lo, imaginá-lo. No seu
último livro, Pedagogia da autonomia, ele critica o neoliberalismo exatamente por
negar o sonho, por ser fatalista, por negar a possibilidade de mudança. Para ele o
neoliberalismo se apresenta, arrogantemente, como a plenitude dos tempos, não
reconhece que a história continua se fazendo. O neoliberalismo afirma o “fim da
história” porque não lhe interessa que a história mude. Interessa sim que ela continua
como está.
2º - A pedagogia é um guia na construção do sonho. Não basta sonhar. É preciso
saber como construir o sonho. Paulo Freire apresentou os seus “saberes necessários”
para realizar o sonho. Ofereceu em Pedagogia da autonomia, a mediação pedagógica
necessária para conquistá-lo. Todos os livros de Paulo Freire são livros de pedagogia,
isto é, são livros destinados à educação para construir o sonho.
3º - A pedagogia vê primeiro o futuro, um futuro melhor para todos, a utopia.
Depois é que ela se volta para o presente e para o passado.
4º - A pedagogia freireana é dialógico-dialética. Não mecânica. A dialética
continua válida desde que não exclua a subjetividade. Caso contrário ela se transforma
numa mecânica sem sentido que lembra a divina providência cristã. A dialética
mecanicista é idealista e idealizadora da realidade.
A contribuição de Paulo Freire ao pensamento educativo mundial não se limita
ao que ele diretamente escreveu ou realizou, mas ao que se está fazendo com o seu
legado. O que vem sendo feito pelo Instituto Paulo Freire e pelas Cátedras Paulo Freire,
entre outros grupos e instituições que estão dando continuidade e reinventando sua obra,
é também extremamente relevante hoje, e merece ser acompanhado. Por isso, desejo
destacar, pela sua originalidade, duas contribuições recentes ao pensamento pedagógico,
inspiradas em Freire e que já estão chamando a atenção de educadores em vários países,
muito além das fronteiras onde elas surgiram.
3. Na década de 90, inspirado na experiência de Paulo Freire junto à Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo (1989-1991), nasceu no Brasil um grande
movimento em torno da tese da educação para e pela cidadania, chamado pelo
Instituto Paulo Freire de “Projeto da Escola Cidadã”. O movimento pela “Escola
Cidadã”, nasceu no final da década de 80 na educação municipal para fazer frente ao
projeto político-pedagógico neoliberal.
A Escola Cidadã está fortemente enraizada no movimento de educação popular
comunitária que, na década de 80, traduziu-se pela expressão escola pública popular
com uma concepção e uma prática da educação realizada em diversas regiões do país. A
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concepção de educação popular é certamente a contribuição mais importante da
América Latina ao pensamento pedagógico universal.
São inúmeras e profundas as conseqüências dessa concepção da educação em
termos não apenas de gestão, mas em termos de atitudes e métodos e que formam o
novo professor, o novo aluno, o novo sistema, o novo currículo, a nova pedagogia da
educação cidadã. A seguir enumero algumas delas.
Na Escola Cidadã a presença do professor é importante, mas de um novo
professor, mediador do conhecimento, sensível e crítico, aprendiz permanente e
organizador do trabalho na escola, um orientador, um cooperador, curioso e, sobretudo,
um construtor de sentido, um cidadão. Ensinar não é transferir conhecimentos. É criar as
possibilidades para a sua produção, para a sua construção.
O aluno chega à escola transportando consigo cada vez mais um mundo e uma
carga de informações que ultrapassam o estreito âmbito da família, transmitidas
sobretudo pelos meios de comunicação. As crianças hoje dedicam menos tempo à
escola e ao estudo do que à televisão. Como fazer uma escola eficaz para esse aluno?
Necessitamos de uma pedagogia que promova a aprendizagem permanente. A era do
conhecimento é também a era da sociedade aprendente: todos tornaram-se aprendizes. A
pedagogia da escola cidadã, a pedagogia da educação para e pela cidadania, não está
mais centrada na didática, mas na ética e na filosofia. Ela se pergunta como devemos ser
para aprender antes de nos perguntar o que devemos saber para aprender e ensinar.
Muda a relação ensino-aprendizagem. O diálogo é fundamental, como nos ensinou
Paulo Freire. O professor não é mais o que sabe e o aluno o que aprende. Ambos, em
sessões de trabalho (“círculos de cultura”), aprendem e ensinam com o que juntos
descobrem.
Surge então o novo aluno da Escola Cidadã: sujeito da sua própria formação,
curioso, autônomo, motivado para aprender, disciplinado, organizado, mas, sobretudo,
cidadão do mundo e solidário. Muitas variáveis influenciam a vida pessoal e
profissional de uma pessoa. Contudo, pode-se dizer que, para um bom desempenho
profissional, vale muito hoje um histórico escolar coerente, sem sobressaltos, sem anos
interrompidos, sem notas altas e baixas... valerá uma certa regularidade no “currículo”.
Valerá o engajamento em atividades coletivas, a prestação de serviços voluntários;
valerão os estágios feitos. O que fará a diferença é a vivência do estudante, sua
capacidade de adaptar-se a novas situações, seu espírito crítico, facilidade de
comunicar-se, capacidade de lidar com pessoas e de trabalhar em equipe. Não valerá a
acumulação de conhecimentos. Ser aluno brilhante, sobretudo numa “escola
lecionadora”, burocrática, não valerá grande coisa. Por isso, avaliação de um aluno
deve ser global, deve levar em conta um conjunto de critérios, não por disciplina, mas
por um programa que incentive a capacidade de continuar aprendendo.
A Escola Cidadã é realmente uma nova escola, gestora do conhecimento, não
lecionadora, uma escola com projeto eco-político-pedagógico, isto é, um projeto ético,
uma escola inovadora, construtora de sentido e plugada no mundo. A capacidade de
inovar é essencial na educação do futuro e esta depende também da autonomia dos
estabelecimentos de ensino, tanto na gestão dos recursos quanto na gestão da própria
escola e da construção do seu projeto pedagógico. O surgimento desta escola do futuro,
desse aluno e desse professor, depende muito também do surgimento de um novo
sistema de ensino, único, na medida em que deve democratizar o conhecimento, e
descentralizado, na medida em permite uma pluralidade de organizações e instituições.
Esse talvez seja o maior obstáculo à escola cidadã e à educação para e pela cidadania.
Ela cresce na base e isso é importante. Mas tem seu crescimento dificultado num
sistema de ensino burocrático, lento, preguiçoso, que impede e desestimula a inovação.
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Não se pode falar do movimento da Escola Cidadã sem mencionar a
reorientação curricular a ele associada. O currículo da Escola Cidadã é considerado
como espaço de relações sócio-culturais. Além de ser o espaço do conhecimento é
também o espaço do debate das relações sociais e humanas, o espaço do poder, do
trabalho e do cuidado, da gestão e da convivência. Por isso tem a ver com a ética, a
sustentabilidade, a questão da violência. Currículo e projeto eco-político-pedagógico da
escola são realidades inseparáveis. O currículo revela a trajetória político-pedagógica da
escola, seus sucessos e insucessos, seus fracassos e vitórias. Se a escola deve continuar
o projeto de vida de seus instituintes – professores, funcionários, alunos e comunidade -
o currículo relaciona-se também com o projeto de vida de cada um. Por isso, ele precisa
ser avaliado e reavaliado constantemente. Ele não pode reduzir-se a conteúdos
disciplinares ou atitudinais. Não pode limitar-se a saberes e competências ligados à
inteligência. Na Escola Cidadã ele é considerado ao mesmo tempo contexto e processo,
projeto de vida institucional e individual.
4. Nos últimos anos, a concepção de Escola Cidadã foi marcada pela
Ecopedagogia – à qual Paulo Freire também contribuiu com sua reflexão crítica junto
ao Instituto Paulo Freire - entendendo o novo currículo com base na idéia de
sustentabilidade. A educação para e pela cidadania é também uma educação para uma
sociedade sustentável. A Escola Cidadã e a Ecopedagogia sustentam-se no princípio de
que todos, desde crianças, temos um direito fundamental que é o de sonhar, de fazer
projetos, de inventar, como pensavam Marx e Freire; todos temos o direito de decidir
sobre nosso destino, também as crianças, como sustentava o educador polonês Janusz
Korczak. E não se trata de reduzir a escola e a pedagogia atuais a uma tabula rasa e
construir por cima de suas cinzas a Escola Cidadã ideal e a ecopedagogia. Não se trata
de uma escola e de uma pedagogia “alternativas”, no sentido de que devem ser
construídas separadamente da escola e da pedagogia atuais. Trata-se de, no interior
delas, a partir da escola e da pedagogia que temos, dialeticamente, construir outras
possibilidades, sem aniquilar tudo o que existe. O futuro não é o aniquilamento do
passado, mas a sua superação.
Os problemas atuais, inclusive os problemas ecológicos, são provocados pela
nossa maneira de viver e a nossa maneira de viver é inculcada pela escola, pelo que ela
seleciona ou não seleciona, pelos valores que transmite, pelos currículos, pelos livros
didáticos. Precisamos reorientar a educação a partir do princípio da sustentabilidade,
isto é, retomar nossa educação em sua totalidade. Isso implica uma revisão de currículos
e programas, sistemas educacionais, do papel da escola e dos professores e da
organização do trabalho escolar. A ecopedagogia, tal como vem sendo desenvolvida
pelo Instituto Paulo Freire, implica uma reorientação dos currículos para que
incorporem certos princípios, tais como:
1º - considerar o planeta como uma única comunidade;
2º - considerar a Terra como mãe, como um organismo vivo e em evolução;
3º - construir uma nova consciência que sabe o que é sustentável, apropriado, e
faz sentido para a nossa existência;
4º - ser terno para com essa casa, a Terra, nosso único endereço;
5º - desenvolver o senso de justiça sócio-cósmica considerando a Terra como um
grande pobre, o maior de todos os pobres;
6º - promover a vida: envolver-se, comunicar-se, compartilhar, problematizar,
relacionar-se, entusiasmar-se;
7º - caminhar cotidianamente com sentido;
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8º - desenvolver uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não
instrumental.
As pedagogias clássicas eram antropocêntricas. A ecopedagogia parte de uma
consciência planetária (gêneros, espécies, reinos, educação formal, informal e nãoformal).
Ampliamos o nosso ponto de vista. Do homem para o planeta, acima de
gêneros, espécies e reinos. De uma visão antropocêntrica para uma consciência
planetária e para uma nova referência ética. A Escola Cidadã, orientando-se por uma
Ecopedagogia ou Pedagogia da Terra, deve, por isso, ser entendida também como uma
alternativa para a construção de uma sociedade sustentável.
O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não é apenas o capital da
empresa transnacional que precisa dele para a inovação tecnológica. Ele é básico para a
sobrevivência de todos. Por isso ele não deve ser vendido ou comprado, mas
disponibilizado a todos. Esta é a função de instituições que se dedicam ao
conhecimento, apoiados nos avanços tecnológicos. Esperamos que a educação do
futuro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao mesmo tempo nossa causa,
nossa aposta, nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de políticas públicas no setor,
acabaram surgindo “indústrias do conhecimento” prejudicando uma possível visão
humanista, transformando o conhecimento em instrumento de lucro e de poder
econômico.
Cabe a Escola Cidadã inserir-se ativamente no movimento global de renovação
cultural aproveitando-se de toda a riqueza de informações disponibilizada pelas novas
tecnologias. Hoje é a empresa que está assumindo esse papel inovador. A escola não
pode ficar a reboque das inovações tecnológicas. Ela precisa ser um centro de inovação.
Nós temos uma tradição de dar pouca importância à educação tecnológica, a qual
deveria começar já na educação infantil. Na sociedade da informação a escola deve
servir de bússola para navegar nesse mar do conhecimento, superando a visão utilitarista
de só oferecer informações “úteis” para a competitividade, para obter resultados. Deve
oferecer uma formação geral na direção de uma educação integral. O que significa
servir de bússola? Significa orientar criticamente, sobretudo as crianças e jovens, na
busca de uma informação que os faça crescer e não embrutecer.
Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da “reciclagem” e da atualização de
conhecimentos e muito além da “assimilação” de conhecimentos. A sociedade do
conhecimento é uma sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem: parcerias
entre o público e o privado (família, empresa, associações...), avaliações permanentes,
debate público, autonomia da escola, generalização da inovação. As conseqüências para
a escola e para a educação em geral são enormes: ensinar a pensar; saber comunicar-se;
saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saber
organizar o seu próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente e
autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz autônomo e a
distância.
Neste contexto de impregnação do conhecimento cabe à escola: amar o
conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento
cultural; cabe-lhe selecionar e rever criticamente a informação; formular hipóteses; ser
criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e não pura receptora;
produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado. E mais: numa perspectiva
emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em favor dos excluídos.
Não discriminar o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode construir e reconstruir
conhecimentos, saber, que é poder. A tecnologia contribuiu pouco para a emancipação
dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania. A escola deixará de ser
“lecionadora” para ser “gestora do conhecimento”. A educação tornou-se estratégica
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para o desenvolvimento. Mas, para isso, não basta modernizá-la. Será preciso
transformá-la profundamente.
A escola precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação,
planejar-se a médio e a longo prazos, fazer sua própria reestruturação curricular,
elaborar seus parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de
dentro das escolas são mais duradouras do que as impostas de fora. Da sua capacidade
de inovar, registrar, sistematizar a sua prática/experiência, dependerá o seu futuro.
Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento, diante do aluno que é o
sujeito do sua própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz.
Para isso ele também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos
sentidos para o quefazer dos seus alunos.
Em geral temos a tendência de desvalorizar o que fazemos na escola e de buscar
receitas fora dela quando é ela mesma que deveria governar-se. É dever dela ser cidadã
e desenvolver na sociedade a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento
econômico e o mercado. A cidadania precisa controlar o Estado e o Mercado. A escola
precisa dar o exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais importante do que
reproduzir com qualidade o que existe. A matéria prima da escola é sua visão do futuro.


Disponível em www.google.com.br- acesso em14/05/2005

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